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A ponderação da indenização da Lei do Vale Pedágio
A Lei 10.209/2001, ao instituir o Vale-Pedágio obrigatório , determinou como dever do embarcador antecipar para o transportador, em modelo próprio, o valor dos pedágios existentes no percurso contratado, visando a cobertura de custos de deslocamento de carga por meio de transporte rodoviário.
Em caso de descumprimento de tal obrigação, a Lei previu, em seu artigo 8º, que fosse aplicada uma indenização a ser paga pelo embarcador ao transportador autônomo, de valor correspondente ao dobro do frete realizado.
Porém, como há uma brutal diferença entre o custo dos pedágios e o valor do frete, as indenizações passaram a atingir patamares desarrazoados.
Para contextualizar a situação, tomemos como exemplo o seguinte caso: "Pelo não adiantamento de R$ 1.588,10 a título de custo com pedágio, o embarcador é condenado a indenizar o transportador no valor de R$ 38.147,24, que corresponde ao dobro do valor do frete (valor do frete — R$ 19.076,12). Ou seja, estamos diante de uma indenização de 2.402% a mais do que o valor principal".
Com efeito, diante de situações em que a aplicação do artigo 8º da Lei nº 10.209/2001 atingisse valores demasiadamente elevados, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) havia se posicionado no sentido de determinar uma "ponderação" na aplicação da norma, com vistas à aplicação da indenização de modo equalizado em patamares legalmente e socialmente aceitáveis.
Nesse sentido, destaca-se o Recurso Especial nº 1.520.327/SP, da 4ª Turma, de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, julgado no ano de 2016, em que foi determinada a ponderação da aplicação da indenização prevista no artigo 8ª da Lei 10.209/2001, pelo fato dela implicar em valores desarrazoados. Vejamos excerto da ementa:
"5. Embora não haja a possibilidade de determinar a exclusão da multa, pois isso descaracterizaria a pretensão impositiva do legislador, é cabível a aplicação do acercamento delineado pelo artigo 413 do Código Civil, no qual está contemplada a redução equitativa do montante, se excessivo, pelo juiz, levando-se em consideração a natureza e a finalidade do negócio jurídico."
Esse entendimento era replicado por alguns Tribunais de Justiça. A título ilustrativo, destaca-se que esse era o posicionamento da 12ª Câmara Cível do E. TJ-RS, conforme se podia verificar dos seguintes julgados: Apelação Cível, Nº 70080644917, 12ª Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator desembargador Pedro Luiz Pozza, Julgado em: 05-09-2019; Apelação Cível, Nº 70080657802, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator desembargador Pedro Luiz Pozza, Julgado em: 27-06-2019; Apelação Cível, Nº 70081556177, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator desembargador Pedro Luiz Pozza, Julgado em: 29-08-2019.
Contudo, entre muitas outras críticas e debates envolvendo o artigo 8º da Lei nº 10.209/2001, o referido artigo teve a sua constitucionalidade contestada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) junto ao STF no ano de 2020, tendo sido então declarada, na ADI 6.031, a sua constitucionalidade.
A declaração de constitucionalidade do artigo em questão teve muitos reflexos, cabendo aqui destacar dois:
Primeiro: De lá para cá houve uma verdadeira enxurrada de ações de transportadores pleiteando receber o dobro do valor do frete pelo não pagamento (ou suposto não pagamento) do vale-pedágio dos embarcadores.
Segundo: Os juízes de Direito e os Desembargadores passaram a entender que essa norma não mais poderia ter a sua aplicação ponderada, pois o STF a havia declarado constitucional. Nesse sentido específico, cabe destacar a mudança de posicionamento da 12ª Câmara Cível do E. TJ/RS. Para tanto, destaca-se o julgamento da Apelação Cível, Nº 5012537-80.2021.8.21.0022/RS, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: desembargador UMBERTO GUASPARI SUDBRACK, Julgado em: 28-04-2022. Vejamos excerto da ementa:
"(...) Desse modo, descabe fazer qualquer juízo de valor a respeito quer da aplicação do art. 8º, quer dos valores derivados da incidência da multa da referida norma considerando, ao fim e ao cabo, o julgamento proferido pelo STF no âmbito da ADI nº 6.031/DF, em acórdão cuja observância deverá ter lugar de forma obrigatória por todos os órgãos Poder Judiciário, na forma do art. 102 da CF/1988, cuja redação transcrevo a seguir: (...)".
Com todo o respeito aos posicionamentos contrários, mas nos parece que o entendimento que está se firmando está fortemente equivocado. O fato de o STF ter declarado o artigo 8º da Lei 10.209/2001 constitucional significa que a norma foi compreendida como em conformidade com a ordem constitucional brasileira, tendo sua validade normativa confirmada. No entanto, o fato de o artigo ter sido declarado constitucional não impede que ele possa ser ponderado.
Ao contrário, somente normas válidas podem fazer parte do ordenamento e, portanto, podem ser ponderadas no momento da sua aplicação. De outro vértice, normas inválidas (ou seja, sem validade) não podem ser aplicadas e, por consequência, não podem ser ponderadas (a ponderação da norma é uma decorrência da sua aplicação).
Em outras palavras, a declaração de constitucionalidade de uma norma apenas atesta a sua validade, isto é, apenas diz que ela compõe o ordenamento jurídico brasileiro e por isso pode ser aplicada.
Outrossim, uma norma declarada constitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal) não a torna uma norma especial ou diferente das demais normas jurídicas que compõem o arcabouço legal brasileiro. Em verdade, ela tem o mesmo peso e o mesmo nível de validade das demais normas, ou seja, não estamos diante de uma "super norma".
Sendo assim, o artigo 8º da Lei 10.209/01 é uma norma jurídica que está estruturada do mesmo modo das demais normas que compõem o ordenamento. Ela possui uma hipótese à qual é imputada uma consequência. Essa observação é relevante, pois demonstra que a referida norma jurídica incide sobre um suporte fático, e é guiada pela Teoria Geral do Direito. Desse modo, o artigo 8º está estruturado pelos planos da validade, vigência, eficácia e vigor.
Assim, quando se analisa a ponderação da aplicação da norma prevista no artigo 8º não se está discutindo a sua validade (matéria objeto da ADI 6.031), mas sim se está debatendo a sua eficácia.
O plano da eficácia corresponde à capacidade que as normas têm de produzir efeitos e por isso tem a ver com a sua aplicabilidade. Uma norma não pode ser aplicada ou, ao menos não inteiramente aplicada, se isso violar outras normas legais.
Considerando que a indenização prevista pelo artigo 8º atinge valores desarrazoados perante possíveis prejuízos, há que se ponderar sua aplicação por conflitar com outros importantes princípios jurídicos, como a vedação ao enriquecimento ilícito e a preservação da empresa.
Desta feita, o caso em questão reclama a aplicação do postulado da razoabilidade como equidade, postulado este que "exige a harmonização da norma geral ao caso individual" calibrando a relação entre incidência e aplicação da regra geral jurídica frente as peculiaridades do caso concreto.
Os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade funcionam como metanormas que orientam a aplicação das normas (regras e princípios). Valendo-se da metáfora de Humberto Ávila, a razoabilidade não se confunde com as normas que preencherão os pratos da balança da justiça, mas sim correspondem à própria balança.
Nesse caso, a balança da justiça (postulado da razoabilidade) terá de um lado (compondo um dos pratos da balança) a necessidade de aplicar a indenização que determina o pagamento de duas vezes o valor do frete (artigo 8º da Lei 10.209/01); e do outro lado (compondo o outro prato da balança) a necessidade de não onerar excessivamente a empresa embarcadora (princípio da preservação da empresa), e de evitar que a referida indenização gere enriquecimento ilícito para o transportador (princípio da vedação do enriquecimento ilícito).
À vista disso, o juiz não só pode — como deve — ponderar a aplicação das indenizações calcadas na Lei 10.209/2001, e isso mesmo depois que a norma foi declarada constitucional na ADI 6.031, com o fim de evitar enriquecimento ilícito para os transportadores e de preservar as empresas embarcadoras.
Ainda, o artigo 8º da Lei 10.209/2001 pode ter sua aplicação ponderada pelo artigo 413 do Código Civil (como foi feito pelo STJ no RE nº 1.520.327/SP — do ano de 2016). E tal ponderação pode se dar isoladamente ou em conjunto com o postulado da razoabilidade (ou da proporcionalidade), evitando-se, assim, o enriquecimento ilícito.
Além disso, do ano de 2020 (julgamento da ADI 6.031) ao ano de 2022 houve uma reviravolta socioeconômica para as empresas de transporte. Primeiro porque houve expressivo aumento no número de demandas com esse objetivo e, segundo porque essas demandas, quando julgadas procedentes, estão tendo a aplicação de indenizações em patamares desproporcionais e excessivos.
Nesse sentido, frente ao forte aumento das demandas de transportadores pleiteando a indenização do dobro do valor do frete, se as condenações não forem ponderadas em patamares razoáveis, as empresas transportadoras inevitavelmente irão à bancarrota. Assim, com a finalidade de preservar a empresa, é possível ponderar a aplicação do artigo 8º da Lei 10.209/01 com base no artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010) também isoladamente ou em conjunto com o postulado da razoabilidade (ou da proporcionalidade).
Diante desses argumentos, esperamos que os juízes de direito e os Tribunais de Justiça revejam o seu posicionamento, bem como que o STJ mantenha o seu entendimento de permitir e realizar a ponderação da aplicação da indenização prevista no artigo 8º da Lei 10.209/01 sempre que ela se demonstrar desarrazoada e excessiva.
Isto porque é primordial se observar que é equivocada a interpretação de que pelo fato de que a norma em questão ter sido declarada constitucional pelo STF, esta não possa ser alvo de ponderação com base na legislação de regência. Até porque essa permissividade está positivada na legislação pátria e, por evidente, em normas constitucionais, o que afasta qualquer incompatibilidade entre declaração de constitucionalidade e aplicação do redutor previsto na legislação infraconstitucional.
Fonte: Conjur